domingo, 2 de outubro de 2011

A poesia não serve para nada #2

AUTO-RETRATO


O melhor auto-retrato que conheço é o de um
pintor que vê um ovo e pinta uma ave. Há
pessoas cujo melhor auto-retrato está nas suas
unhas. Dez anos atrás julgava que o meu melhor
auto-retrato seria afinal um beijo durante o qual se
pensa no futuro para que voem juntos
os sabores. Toda a magia é ingénua. Toda
a palavra é mágica. Cinco anos atrás pintei o meu
melhor auto-retrato: um coração e um
corpo que vibra dentro dele o alimenta. Dez
minutos atrás comecei um poema
pensando que em todas as palavras vibra um desejo
de silêncio, uma consciência de esterilidade.
Como me arrisco a passar por imbecil.
Todos os auto-retratos implicam um risco semelhante.
Os sonhos suicidam-se com soníferos.


Mariano Peyrou (2009), Discurso Opcional Obrigatório, Lisboa: Edições Averno, p. 29. (Trad. Manuel de Freitas)